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Quarta, 04 Novembro 2020 17:52

Mariana Ferrer e o Tribunal de Exceção contra as mulheres

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Conta a mitologia grega que Medusa era uma sacerdotisa, virgem, do Templo de Atena, a deusa da guerra e da sabedoria. Atena era prima e rival de Poseidon, o deus supremo do mar. Sem conter a sua volúpia masculina e, querendo ofender Atena, Poseidon estuprou Medusa e, Atena, enfurecida, transformou a sacerdotisa em monstro, de cabelos de serpentes e olhar descomunal que petrificava quem ousasse olhá-la.

A beleza invejada e cobiçada foi transformada em monstruosidade, seu corpo já não poderia ser visto sem que o observador pagasse com a própria vida. E, assim, injustiçada, Medusa foi condenada a mais profunda solidão. E foi perseguida por seu atributo de transformar pessoas em pedra. Sua cabeça era o prêmio mais desejado entre os guerreiros. E, foi decapitada por Perseu, filho de Zeus, cuja imagem se eternizou segurando a cabeça ensanguentada de Medusa.

Medusa é a clássica vítima culpabilizada pelo próprio sofrimento. Desmoralizada, humilhada, caçada e excluída. Uma alegoria que se reinventa a todo instante, em pleno século XXI!

No último dia 22 de outubro, Leda Mota (PCdoB), candidata a vereadora em Resende/RJ, foi presa após ter sofrido violência doméstica. Ela foi agredida e teve os móveis de sua casa quebrados por seu marido, na presença de suas filhas. Leda foi presa por policiais que alegaram desacato, muito embora houvesse registro em vídeo da agressão que sofreu. Esse é um, entre centenas de milhares de casos, que revelam o quanto a violência contra a mulher está naturalizada nas práticas dos agentes e das instituições públicas. O Estado é um macho opressor, não podemos fechar os olhos para essa realidade.

Mariana Ferrer é outro caso exemplar da violência contra a mulher e da cultura do estupro patrocinada pelo Estado. Estuprada pelo empresário André de Camargo Aranha, de Santa Catarina, Mariana trabalhava na recepção de uma casa de festas. Foi drogada e estuprada. Há provas clínicas (sémen do estuprador no corpo e calcinha da garota foram encontrados no exame de corpo de delito). Aos 19 anos, Mariana ainda era virgem quando foi estuprada.

O Estado é Poseidon, o macho estuprador. O estupro sempre foi o castigo sublime da violência masculina sobre os corpos das mulheres porque combina violência física e humilhação moral.

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No caso de Mariana, o estupro foi levado às cortes, na primeira e segunda instância e, expôs as vísceras de um sistema judiciário profundamente comprometido com a estrutura patriarcal, machista e misógina. Violência continuada contra a vítima.

O Advogado do estuprador, Claudio Gastão da Rosa Filho, nos deu um monumental exemplo de misoginia ao atacar a vítima até às lágrimas e desespero. A tolerância do Juiz com a violência que sofria Mariana, causou muita indignação. Que tribunal é esse? Que juiz é esse??

É preciso ir à raiz do problema, antes que nos percamos apenas na aparência dos fatos espetaculosos que o julgamento de Ferrer suscitou. Lembrar que são os homens que dominam TODOS os aparelhos do Estado e é por isso que a cultura do estupro se mantém. O estuprador, o advogado, o promotor e o Juiz são apenas representação de cenas que se repetem nauseantemente pelo Brasil.

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Não é a mera opinião das pessoas ou a existência de homens que não gostam de mulheres que geram a cultura do estupro: é a impunidade, a inoperância do Estado quando se trata dos interesses e das vidas das mulheres. E isso só acontece porque há ausência das mulheres no poder. Essa ausência transforma a maioria em minoria e autoriza os homens a violarem nossos corpos, impunemente.

No comando da estrutura estatal, são os homens que tomam as decisões políticas, jurídicas e administrativas. As mulheres são absoluta minoria, embora sejamos maioria da população, da classe trabalhadora e maioria com ensino superior, mestrado e doutorado. Apesar disso, no Judiciário: homens brancos acusam e julgam mulheres, pretos e pobres, sempre procurando proteger os seus semelhantes. Por semelhantes, entenda-se: homens brancos, cis, héteros, endinheirados.

Imagine se a Mariana Ferrer tivesse sido estuprada por um homem negro, pobre?! Certamente, não estaríamos diante da polêmica do “estupro culposo” porque a proteção só existe entre os iguais e, pobres e negros não são iguais aos homens do poder. Aliás, nossa existência é sempre dolosa, invariavelmente!

O tal estupro culposo decretado pelo Juiz Rudson Marcos, da 3ª. Vara Criminal de Florianópolis, demonstra que parte do Judiciário se rendeu completamente ao escárnio do Estado de Exceção. Já não se importa em parecer ridículo, em jogar na lata do lixo qualquer conhecimento jurídico e, inventar termos e conceitos inexistentes para justificar sentenças absurdas. Não se importa em parecer uma gangue defendendo o estuprador-empresário como parte do “time”. E assim, o Estado impõe o silenciamento às mulheres, Medusas de nossos tempos.

A “justiça” de um Estado patriarcal, não pode ser justa porque é privativa a alguns tipos de homens, é racializada e machista. Portanto, para a maioria de nós, não há direitos, nem leis válidas. O que há é um Estado de Exceção permanente que nos elege como inimigos.

Um tribunal composto exclusivamente por homens para julgar um crime de estupro é um Tribunal de Exceção, um Tribunal de Inquisição. E, como se sabe, assim como Medusa, bruxas eram condenadas por serem mulheres. E a sociedade dos homens está sempre a reinventar novas formas opressão e de razões para condenar, nos transformar em monstros e/ou nos queimar na fogueira da humilhação, da violência, do desrespeito, da exclusão.

A licença para um estuprador como André Camargo Aranha, não é a mesma para Joãos e Josés da Silva, pretos, pobres. Não é verdade que o machismo beneficie todos os homens da mesma forma. Ele mutila, violenta as mulheres, suas famílias, homens negros e pobres, pessoas LGBTQI+. A única forma de vencer o machismo estrutural é vencer a desigualdade de gênero na partilha do poder. As mulheres precisam, urgentemente, ocupar os espaços no poder proporcional à nossa composição na população, só assim deixaremos de ter tribunais, parlamentos, governos de homens e, o Estado poderá proteger a vida e a dignidade das mulheres.

Justiça à Mariana Ferrer e a todas as mulheres que são vítimas do Estado que molda e autoriza a violência de gênero contra nossos corpos.

EDNA SAMPAIO é doutora em Ciências Sociais, professora da Unemat, gestora governamental e atualmente concorre à uma vaga na Câmara Municipal de Cuiabá

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