Um modelo paradigmático de testagem é o do Reino Unido. Os cidadãos recebem gratuitamente os kits de testes em suas casas, ou podem retirá-los em diversos pontos de distribuição. Além disso, diversos locais – como espaços de trabalho e instituições de ensino – disponibilizam testes na entrada, permitindo que os frequentadores se testem antes de entrar no recinto. Ao garantir farto acesso a testes e sem depender da disponibilidade de profissional especializado para a sua realização, essa política pública induz a massificação da testagem, que agora é feita não apenas em estabelecimentos de saúde, mas também em ambientes de trabalho, escolas, universidades, espaços onde são realizados eventos esportivos, culturais ou empresariais, unidades de privação de liberdade e locais de grande circulação de pessoas. Além do Reino Unido, os autotestes são autorizados pelo menos nos Estados Unidos, Argentina, Israel, Cingapura, França e Alemanha.
O fato de que esses países permitem que pessoas leigas realizem o autoteste é prova de que é possível orientar corretamente as pessoas sobre como realizar o teste, por meio de bulas com instruções de uso em linguagem clara e acessível quanto à coleta e ao descarte de material biológico, bem como usando plataformas – via internet, ou em aplicativos – em que os resultados são informados às autoridades e nas quais são fornecidas diretrizes de qual conduta adotar em caso positivo - o autoisolamento, monitoramento de sintomas e a busca pelos serviços de saúde se necessário.
Em alguns países, a política adotada é a de direcionar as pessoas, cujo autoteste de antígeno tenha resultado positivo, aos estabelecimentos oficiais de saúde, para que se confirme o diagnóstico por meio do teste RT-PCR – reduzindo os custos de testagem e aumentando a eficiência de recursos públicos investidos na aquisição de tais testes. É importante lembrar ainda que, nesses países, para gerar efeitos jurídicos e trabalhistas, os testes oficiais, com respectivos laudos assinados por profissionais, seguem sendo exigidos.
Acreditamos que no atual momento da pandemia, a aprovação de autotestes e a sua incorporação nas políticas públicas de enfrentamento à pandemia ampliaria e facilitaria o acesso à testagem para toda a população, favorecendo o controle da transmissão, desafio ainda maior agora, com a circulação da variante Ômicron, de alta capacidade de transmissão. Dentre as estratégias de saúde pública, o teste de antígeno poderia ser utilizado em ocasiões nas quais há alto risco de transmissão - como na entrada de escolas, do trabalho, de espaços fechados de lazer, de grandes concertos e eventos onde há aglomeração, dentre outros.
Ademais, a incorporação de autotestagem, como política pública, também diminuiria o potencial de transmissão do vírus nos locais de realização de testes. Hoje, no Brasil, como as possibilidades de testagem são restritas a estabelecimentos de saúde, farmácias e laboratórios, o que induz que ocorra a concentração de pessoas nos mesmos locais, que não raro são improvisados e sem ventilação, ou em salas fechadas onde pessoas infectadas precisam retirar as máscaras no momento da coleta para serem testadas. Ou seja, a política atual acaba por estimular o contágio, não para mitigá-lo.
Assim, uma primeira medida que precisa ser considerada com urgência pelas autoridades sanitárias é buscar a exceção prevista no parágrafo único do art. 15 da Resolução ANVISA/RDC n° 36/2015, que atualmente veda o uso de autotestes por usuários leigos. Há um precedente de sucesso nas políticas de saúde adotadas no Brasil, que é a autorização dos autotestes do HIV. Em consonância com recomendações da OMS, o autoteste para o HIV é uma estratégia que visa a complementar os esforços de testagem, que proporciona maior autonomia ao indivíduo ao mesmo tempo em que aumenta o acesso ao diagnóstico nas situações em que os métodos convencionais adotados nos serviços de saúde não permitem alcançar em tempo oportuno a todos que precisam ser testados.
Não se pode esquecer que estamos diante de um cenário excepcional, trazido pela pandemia da Covid-19, no qual a legislação vigente inclusive autoriza a importação de insumos de saúde aprovados por autoridades sanitárias de referência de outros países (Lei n° 14.006/2020).
Quais seriam os riscos e benefícios associados à liberação de autotestes no Brasil?
A preocupação com a liberação dos autotestes deriva de uma série de objeções que, a nosso ver, não justificam sua proibição, em termos dos benefícios mencionados acima.
Uma objeção técnica à liberação dos autotestes é que as pessoas leigas podem se enganar quanto à interpretação do resultado, o que significaria um risco da perspectiva de romper com a exclusividade dos profissionais de saúde em sua aplicação. Porém, com base nas experiências de outros países e de outras doenças, os benefícios da liberação do autoteste são significativamente maiores do que esses eventuais riscos.